Mas Boulanger nunca desenvolveu um programa político, assim facilitando que franceses de posições políticas antagônicas pudessem projetar nele as suas esperanças. Os seus apoiadores bonapartistas viam nele um militar que poderia restaurar a glória francesa, os monarquistas viam nele alguém que poderia reverter o status quo e abrir o caminho para uma restauração, e os republicanos viam nele alguém que colocaria ordem na política. A imagem do general estampava os periódicos franceses mais do que qualquer outra figura política, e ele era um tópico frequente nas músicas dos cabarés. Apesar de ter sido Ministro Da Guerra, Boulanger era visto como um outsider do “establishment” político. Ele era o canto da sereia para todos aqueles que estavam desencantados com a política.
Vemos em Bolsonaro algo parecido. Ele também entrou na cena política pelo caminho militar. Claro, Bolsonaro nunca chegou nem perto da patente de general, e menos ainda do posto de Ministro da Defesa. Mas o capitão se posicionou como um representante da classe militar, inclusive cometendo “atos de indisciplina e deslealdade” contra a instituição com o objetivo de conquistar benefícios para os seus companheiros. Em sua primeira eleição, foi com essa persona que conquistou os seus votos.
O militarismo também é refletido no discurso de ambos personagens. Mas o revanchismo reflexivo contra os alemães deu lugar ao discurso simplista de combate ao crime. Assim como Boulanger não desenvolveu nenhum plano de como derrotar os alemães, Bolsonaro não tem nenhuma proposta séria para o combate ao crime. Afinal de contas, atirar primeiro para perguntar depois é uma tática selvagem que vai contra os preceitos da Constituição de 88, e não uma estratégia sustentável em um Estado Democrático de Direito.
Outra semelhança: Bolsonaro também é visto como um outsider, apesar de ser político há quase tanto tempo quanto a existência da Nova República. Mas esse rótulo tem um fundo de verdade, pois Bolsonaro se posicionou em Brasília como uma figura inoportuna que nunca acreditou no processo de construção da Nova República. Por isso que ficou conhecido por suas participações no Superpop, no Pânico, e no CQC, onde a sua imagem de “Mito” começou a ser construída (assim como no caso do Boulanger, a mídia é cúmplice na criação do “Mito”). O que ficou evidente no desenrolar da sua carreira política é que Bolsonaro é um político de chavões, e não um legislador. É só dar uma olhada no seu plano de governo, que mais parece uma apresentação de Powerpoint amadora feita por alguma agremiação de ensino médio. Mas os chavões de Bolsonaro ressoam na população brasileira—afinal de contas, ninguém é a favor da violência ou da corrupção.
E já que Bolsonaro nunca desenvolveu uma agenda política própria, ele se transformou, assim como Boulanger, numa espécie de esfinge. Os liberais o apoiam por causa do seu recrutamento de Paulo Guedes, mesmo se historicamente os seus comentários indicam uma visão mais alinhada ao nacional-desenvolvimento dos militares que ele tanto admira. Os conservadores o admiram pelo seu discurso moralista, mesmo ele tendo casado três vezes. Seus apoiadores mais libertários admiram o fato de que ele se posiciona contra o “politicamente correto”, mesmo ele sendo contra outras liberdades básicas. Temos até monarquistas, que o apoiam em grande parte pelo desprezo que o capitão demonstra contra as instituições republicanas. Como Bolsonaro tem apenas dois projetos de lei aprovados, ele navega como um camaleão entre essas diferentes cores políticas.
Finalmente, os chavões transformaram Bolsonaro em uma espécie de “folk hero”. Ele não liga para as normas ou para a cultura institucional do Congresso. Supostamente, ele tem coragem de falar verdades e não aderir ao politicamente correto—uma “coragem”, convenhamos, blindada por sua imunidade parlamentar. Assim como Boulanger, a propaganda política de Bolsonaro não foca no que ele fez ou no que ele vai fazer, mas no que ele representa. É a política da personalidade no seu extremo.
4. A história não se repete, mas ela rima com frequência
Assim como Boulanger, Bolsonaro representa um possível rompimento com a transição de poder na Nova República. Apesar de diferenças políticas, tanto Fernando Henrique Cardoso, quanto Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff acreditam que a Constituição de 88 representa um avanço na história do Brasil—um momento de superação sobre a Ditadura Militar e a inauguração de uma nova era democrática. Mas Bolsonaro tem outra visão, uma que coloca em cheque as instituições. Afinal, para ele, a “Constituição Cidadã” foi um retrocesso. Bolsonaro, então, seria o primeiro presidente a questionar o alicerce sobre o qual começamos a construir o Brasil contemporâneo.
Se Boulanger representou uma terrível ameaça à Terceira República francesa, Bolsonaro representa a maior ameaça já vista à Nova República brasileira. Os republicanos franceses conseguiram evitar a ascensão de Boulanger, em grande parte por causa das próprias incertezas do general. As coisas são menos promissoras no caso do capitão, que parece estar certo de tudo—em especial daquelas coisas em que ele está mais errado.
Mas independente do que acontecer, é importante lembrar que o Boulangismo também resultou em reformas importantes dentro das outras linhagens políticas. Um dos primeiros fenômenos populistas da história, o Boulangismo cresceu justamente porque ele reconheceu os anseios de uma parte expressiva da população—no caso, uma classe trabalhadora que transitava de uma manufatura artesanal para um processo mais industrial, e que não via os políticos tradicionais oferecerem respostas para essas incertezas. Mas depois que a ameaça apresentada por Boulanger foi superada, os republicanos moderados ficaram mais atentos às demandas da crescente força industrial, e lançaram uma série de projetos de seguridade social que ajudaram a transformar a Terceira República em um dos regimes mais progressistas do começo do século XX.
No contexto brasileiro, a violência representa o cerne da questão. De acordo com dados do IPEA, em 1996 a taxa nacional de homicídios era de 27,80 por 100 mil habitantes, enquanto em 2016 foi de 30,33. Mas, ironicamente, entre 2002 e 2016, ou seja, quando o PT estava no poder no âmbito nacional, a taxa de homicídios caiu quase pela metade na região sudeste (que apoiou Bolsonaro em peso), indo de 34,04 para 19,47. Na cidade do Rio de Janeiro, que nos deu Bolsonaro e que melhor representa o tipo de violência que ele diz combater, a redução da taxa foi maior ainda, indo de 53,48 para 25,82 (a apuração do primeiro turno indica que ele recebeu 58,29% dos votos na cidade). Ironicamente, o capitão recebeu uma maior proporção dos votos nas regiões onde, comparativamente, o problema da violência é menor. Afinal, a única região onde Bolsonaro não ficou na frente no primeiro turno foi o nordeste, onde a taxa de homicídios explodiu de 18,15 em 1996 para 43,68 em 2016.
Essas incongruências demonstram que a maneira como a violência é percebida é tão importante quanto a sua realidade, pois ela está no centro do imaginário coletivo mesmo nos lugares onde ela caiu. Esse fenômeno pode ser explicado, em parte, pelo que a antropóloga Teresa Caldeira intitulou de “fala do crime”. Como ela explica no seu livro Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo, “[a]s narrativas cotidianas, comentários, conversas e até mesmo brincadeiras e piadas que têm o crime como tema contrapõem-se ao medo e à experiência de ser uma vítima do crime e, ao mesmo tempo, fazem o medo proliferar”.[3] O Bolsonaro soube acessar esse imaginário, e construiu a sua imagem em cima disso. Os outros partidos têm que tomar isso em consideração e desenvolver propostas que coloquem a segurança pública no centro de seus diferentes projetos de nação sem usurpar os direitos humanos básicos previstos pela Constituição de 88.