Bolsonaro, o padeiro tropical:


Jair Bolsonaro, foto por Antonio Cruz, 11 de fevereiro 2014 (Wikimedia Commons).

Général Boulanger, foto por Nadar, circa 1875-1895 (Gallica, BNF).


A multidão observa Boulanger sair do Restaurante Durand após a sua vitória eleitoral. M. Louis Tinayre, Le Monde illustré, 2 de fevereiro 1889 (Wikimedia Commons).

Em 27 de janeiro de 1889, Georges Boulanger, um general francês, jantava no Restaurante Durand, na Place de la Madeleine em Paris. Não era um jantar qualquer. Boulanger acabava de ser eleito deputado, massacrando o seu adversário com 224.000 votos contra 160.000. Enquanto ele terminava a sua refeição, cerca 50.000 parisienses se aglomeraram na praça, ansiosos para saber o que o general, cujo o sobrenome quer dizer padeiro, faria com o seu mandato.

Esteticamente, a república parlamentar francesa poderia dar a impressão de estar indo bem. Afinal, os últimos detalhes da Torre Eiffel estavam sendo finalizados, e todos aguardavam com expectativa a Exposição Universal de 1889. Mas a pátina do espetáculo não era o suficiente para cobrir a fragilidade do regime. A república, afinal de contas, havia sido instaurada há menos de vinte anos, e não contava com legitimidade absoluta. Monarquistas (que se dividiam entre os que apoiavam a dinastia Bourbon e os que apoiavam a dinastia Orleãs) e bonapartistas ainda tinham esperança de uma possível restauração de seus respetivos regimes. E muitos dos trabalhadores que inicialmente apoiaram a nova república estavam desiludidos com a letargia do parlamento e com uma série de escândalos de corrupção.

De acordo com alguns relatos, a multidão na Place de la Madeleine instigava Boulanger, o personagem político mais popular na França, a marchar ao Palais de l’Élysée e instaurar uma ditadura militar. A república parlamentar parecia estar pendurada por um fio. Mas Boulanger decidiu terminar o seu jantar e seguir para a casa da sua amante. De acordo com uma anedota contemporânea, um dos arquitetos da curta carreira política do general tirou o relógio do bolso e falou: “Meia-noite e cinco, messieurs. O Boulangismo entrou em declínio tem cinco minutos.”

O comentário foi espirituoso, pois a chance perdida por Boulanger abriu uma oportunidade para os republicanos reprimirem o general e seu movimento. O Ministro do Interior emitiu um mandato de prisão acusando Boulanger de conspiração e traição contra o Estado, e a Câmara dos Deputados revogou sua recém-conquistada imunidade parlamentar. Boulanger exilou-se em Bruxelas, onde ficou até a sua morte melodramática. Em 1891, o general deu um tiro na sua cabeça e caiu morto em cima do túmulo da sua amante.

O movimento que apoiava Boulanger—o Boulangismo—foi um fenômeno inédito na França. Como explica o historiador israelense Zeev Sternhell, ao conciliar sob a égide de um populismo nacionalista algumas políticas socialistas e críticas reacionárias ao regime parlamentar, o Boulangismo foi um dos focos de origem da “direita revolucionária” e do fascismo que ela subsequentemente engendrou.[1] Boulanger e sua base idiossincrática foram talvez a maior ameaça à Terceira República Francesa nos seus 70 anos de existência (o regime finalmente caiu em 1940 com a invasão da Alemanha). Como um fenômeno que surgiu paralelamente com o experimento da democracia em massa, o Boulangismo nos ajuda a entender os riscos às instituições republicanas quando se deparam com uma espécie de “tempestade perfeita” composta de uma crise de legitimidade, uma revolução midiática, e uma figura impregnada de autoridade carismática (em termos Weberianos, onde essa figura adquire o seu poder por ser vista como dotada de habilidades extraordinárias pelos seus seguidores). Em outras palavras, podemos compreender algo do fenômeno Bolsonaro ao analisá-lo sob a ótica de Boulanger.

1. Repúblicas em cheque

Indiscutivelmente, a Nova República sofre atualmente a sua maior crise de legitimidade. A crise econômica, os escândalos de corrupção, e a escalada da violência colocou em dúvida na cabeça de muita gente a própria viabilidade da Constituição de 88—como se, para usar a imagem usada por Immanual Kant e popularizada por É o Tchan, “pau que nasce torto nunca se endireita”. Por exemplo, há poucos meses, o comentarista-historiador Marco Antônio Villa declarou que “[a Constituição de 88] deu o que tinha de dar”. O próprio Partido dos Trabalhadores, que nasceu junto com a “Constituição Cidadã”, já vacilou entre reformar alguns de seus elementos e começar do zero com uma nova constituinte, apesar de que Fernando Haddad afirmou recentemente que sua campanha é uma campanha em defesa ao pacto da constituinte de 88. Mais ameaçador é o tom tomado pelo vice de Jair Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, que disse sem nenhum receio que a nossa Carta Magna “foi um erro”.

Charge de Boulanger atacando a “Bastilha Parlamentar”, uma referência a um dos eventos fundadores da Revolução Francesa, que havia ocorrido 100 anos antes da eleição do General. Lemos na bandeira francesa: “Viva a Republica Honesta! Abaixo os Ladrões!” O canhão é batizado de “sufrágio universal”. La Bombe, 14 de julho 1889 (Wikimedia Commons).

Assim como a Terceira República Francesa, que tinha menos de 20 anos quando o Boulangismo entrou em cena, a nossa Nova República ainda é nova—com apenas 30 anos nas costas. Ambas as repúblicas seguiram regimes autoritários que não encontravam muita resistência no Congresso ou no Judiciário para colocar os seus planos em ação. Além do mais, o cerceamento da liberdade de imprensa nesses regimes anteriores—o Segundo Império de Louis-Napoléon Bonaparte e a Ditadura Militar—mantinha a corrupção debaixo do tapete, algo que ajudou a criar o mito de como os autoritários de antes pelo menos eram honestos (o mito é certamente mais forte no Brasil). Tanto Boulanger quanto Bolsonaro remetem a esse passado imaginado, ainda mais que ambos começaram suas carreiras políticas naquela que é, no imaginário popular, a mais disciplinada e menos corrupta das instituições: as forças armadas.

Essa nostalgia acrítica—o que a crítica literária Svetlana Boym define como “um romance com a sua própria fantasia”[2]—é reforçada pela publicidade dada aos escândalos de corrupção (algo certamente positivo, mas, devemos lembrar, relativamente novo). Na França do final do século XIX, o escândalo que ajudou a impulsionar Boulanger foi a descoberta de que Daniel Wilson, o genro do presidente e um deputado, estava vendendo condecorações da Legião de Honra—a ordem máxima da nação—para qualquer um que pagasse. O presidente, Jules Grévy, foi forçado a renunciar e Wilson perdeu a sua imunidade parlamentar, sendo logo em seguida condenado a dois anos de prisão. Porém, após uma apelação, a pena de Wilson foi revogada, e ele retornou ao parlamento. Enquanto isso, Boulanger foi expulso do exército por fazer campanha política enquanto na ativa. Para muitos franceses as coisas não podiam parecer mais claras—a lei não valia para todos.

No Brasil, o escândalo que abalou as estruturas da Nova República foi, é claro, a Lava Jato. Ironicamente, até o momento o que a operação demonstrou foi que, apesar de alguns problemas aqui ou ali, no geral as instituições republicanas e a separação dos poderes estão funcionando. Afinal de contas, o líder democraticamente eleito mais popular da história moderna encontra-se atrás das grades, respeitando o desenrolar do processo. Mas mesmo assim, o efeito nefasto da Lava Jato for a criminalização da política—consolidando-se de vez a visão de que todos os políticos são corruptos. Bolsonaro, que cultivou a imagem de “outsider”, aparece para muitos como uma exceção, o que também é extremamente irônico, uma vez que o partido do qual ele era membro até recentemente—o Partido Progressista—era o que tinha o maior número de investigados pela Lava Jato. E Bolsonaro está implicado em seus próprios escândalos—desde os estranhos R$ 200.000 que recebeu do PP (que, por sua vez, tinha recebido a mesma quantia de propina da JBS) até a sua infame servidora fantasma. É difícil explicar como que o patrimônio do capitão cresceu 427% em 12 anos, indo de R$ 433.934,48 em 2006 para R$ 2.286.779,48 em 2018. O crescimento do patrimônio do seu filho Eduardo foi ainda mais espetacular—580% em apenas quatro anos.

Mas Bolsonaro posiciona-se habilmente como alguém que é perseguido por outros motivos. De acordo com a imagem construída, ele não é um político como os outros, e por isso tentam derrubá-lo por outras maneiras—os processos por injúria racial e incitação ao crime de estupro. De uma maneira perversa, o estilo truculento do candidato, que abusa da violência verbal, serve como uma distração (vimos algo parecido com Donald Trump). Para muitos de seus seguidores, essas falas não constituem crimes de verdade, e supostamente ele é perseguido por aqueles no poder de uma forma excepcional.

2. Revoluções midiáticas

Como mencionado acima, regimes autoritários têm a vantagem de poderem reprimir um jornalismo que lança luzes sobre seus malfeitos. Além do mais, tanto a frágil Terceira República Francesa quanto a nossa Nova República tiveram que lidar com uma nova cultura midiática. Na França do final do século XIX, a novidade era a comunicação em massa em uma escala nunca antes vista. Com as leis de liberalização da imprensa de 1881, jornais populares proliferaram-se como cogumelos, principalmente em centros urbanos como Paris. Para se ter uma ideia, no começo do século XX cada um dos quatro maiores periódicos franceses imprimiam diariamente mais de um milhão de cópias. O conteúdo desses jornais era marcado por inovações—desde um numero maior de ilustrações ao advento da entrevista, ambos os quais contribuíram para a construção de personalidades célebres (como o próprio Boulanger). Além do mais, nos anos após 1881, surgiram um número enorme de periódicos políticos, cada um orientado para uma vertente específica, assim contribuindo para a radicalização na política.

No Brasil atual, temos um outro fenômeno de comunicação—as mídias sociais. A importância delas no cenário político começou a se manifestar nas eleições de 2014. Mas o fenômeno realmente se cristalizou durante a campanha de impeachment contra Dilma Rousseff, com grupos às margens do centro político, como o MBL, criando um insidioso e eficaz conteúdo viral para mobilizar a população. Desde então, as mídias tradicionais, que funcionavam como “gatekeepers” de conteúdo e que, por maiores os seus defeitos, prezavam por ter um mínimo de credibilidade, foram marginalizadas. A campanha presidencial de 2018 foi dominada menos pelos debates na televisão e pelas reportagens das revistas semanais e mais pelos textões do Facebook e pelos memes do WhatsApp. Se antes o brasileiro consumia um certo patamar de informações em comum, agora, mais do que nunca, as coisas são mais segmentadas, com cada um consumindo de acordo com a sua bolha, onde as “fake news” correm soltas. A campanha do Bolsonaro explorou isso primorosamente, evitando se expor demasiadamente nas mídias tradicionais e espalhando um conteúdo de fácil digestão pelas mídias sociais—os infames memes. Vazia de conteúdo, a campanha também se beneficiou da imagem que Bolsonaro vinha construindo nos últimos anos—a do “Mito”.

Pintura ilustrando um agente Boulangista fazendo propaganda para o General. Métodos de impressão mais baratos fizeram dessa a primeira campanha democrática iconográfica. Jean-Eugène Buland, Propagande, 1889 (Musée d’Orsay).

Um dos memes mais conhecidos do Bolsonaro (o “Bolsonaro zuero”). Imagens como essas circularam em volumes imensos pelas mídias sociais e ajudaram a construir o mito do “Mito.” Uma nova revolução mídiatica e uma nova fase no populismo.

3. Autoridades carismáticas

Nas suas primeiras décadas de existência, a Terceira República Francesa não podia se gabar de um superávit de líderes carismáticos. O seu maior ícone era Léon Gambetta, que de filho de um humilde merceeiro virou advogado e se transformou no líder da oposição ao Segundo Império. Gambetta virou uma celebridade política ainda maior durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870-71, quando escapou do sítio imposto à Paris a bordo de um balão para articular uma resistência francesa nas províncias. Depois da guerra, Gambetta foi importante tanto por persuadir figuras radicais a aceitarem uma república moderada quanto por prevenir os reacionários de retomarem o poder. Mas o câncer tomou a sua vida em 1882, quando tinha apenas 44 anos de idade.

Boulanger preencheu esse vácuo. Ele também tinha se mostrado heróico durante a Guerra Franco-Prussiana, e depois comandou as tropas que ocupavam a Tunísia (com a derrota para a Prússia, o projeto colonial francês adquiriu uma importância ainda maior). Indicado para o cargo de Ministro da Guerra em 1886, Boulanger introduziu reformas para agradar os soldados (como, por exemplo, retirar as restrições às barbas). Mais importante ainda, ele aflorou os ânimos revanchistas franceses clamando por uma vingança contra os alemães.

Charge pintando Boulanger como o “Ídolo do Dia”. Diferentes jornais carregam o “Santo Boulanger”, enquanto Gambetta observa do céu. A legenda diz: “Em um Estado republicano não se pode ter idolos (máxima republicana)”. Le Grelot, 25 de julho 1886 (Wikimedia Commons)

Mas Boulanger nunca desenvolveu um programa político, assim facilitando que franceses de posições políticas antagônicas pudessem projetar nele as suas esperanças. Os seus apoiadores bonapartistas viam nele um militar que poderia restaurar a glória francesa, os monarquistas viam nele alguém que poderia reverter o status quo e abrir o caminho para uma restauração, e os republicanos viam nele alguém que colocaria ordem na política. A imagem do general estampava os periódicos franceses mais do que qualquer outra figura política, e ele era um tópico frequente nas músicas dos cabarés. Apesar de ter sido Ministro Da Guerra, Boulanger era visto como um outsider do “establishment” político. Ele era o canto da sereia para todos aqueles que estavam desencantados com a política.

Vemos em Bolsonaro algo parecido. Ele também entrou na cena política pelo caminho militar. Claro, Bolsonaro nunca chegou nem perto da patente de general, e menos ainda do posto de Ministro da Defesa. Mas o capitão se posicionou como um representante da classe militar, inclusive cometendo “atos de indisciplina e deslealdade” contra a instituição com o objetivo de conquistar benefícios para os seus companheiros. Em sua primeira eleição, foi com essa persona que conquistou os seus votos.

O militarismo também é refletido no discurso de ambos personagens. Mas o revanchismo reflexivo contra os alemães deu lugar ao discurso simplista de combate ao crime. Assim como Boulanger não desenvolveu nenhum plano de como derrotar os alemães, Bolsonaro não tem nenhuma proposta séria para o combate ao crime. Afinal de contas, atirar primeiro para perguntar depois é uma tática selvagem que vai contra os preceitos da Constituição de 88, e não uma estratégia sustentável em um Estado Democrático de Direito.

Outra semelhança: Bolsonaro também é visto como um outsider, apesar de ser político há quase tanto tempo quanto a existência da Nova República. Mas esse rótulo tem um fundo de verdade, pois Bolsonaro se posicionou em Brasília como uma figura inoportuna que nunca acreditou no processo de construção da Nova República. Por isso que ficou conhecido por suas participações no Superpop, no Pânico, e no CQC, onde a sua imagem de “Mito” começou a ser construída (assim como no caso do Boulanger, a mídia é cúmplice na criação do “Mito”). O que ficou evidente no desenrolar da sua carreira política é que Bolsonaro é um político de chavões, e não um legislador. É só dar uma olhada no seu plano de governo, que mais parece uma apresentação de Powerpoint amadora feita por alguma agremiação de ensino médio. Mas os chavões de Bolsonaro ressoam na população brasileira—afinal de contas, ninguém é a favor da violência ou da corrupção.

E já que Bolsonaro nunca desenvolveu uma agenda política própria, ele se transformou, assim como Boulanger, numa espécie de esfinge. Os liberais o apoiam por causa do seu recrutamento de Paulo Guedes, mesmo se historicamente os seus comentários indicam uma visão mais alinhada ao nacional-desenvolvimento dos militares que ele tanto admira. Os conservadores o admiram pelo seu discurso moralista, mesmo ele tendo casado três vezes. Seus apoiadores mais libertários admiram o fato de que ele se posiciona contra o “politicamente correto”, mesmo ele sendo contra outras liberdades básicas. Temos até monarquistas, que o apoiam em grande parte pelo desprezo que o capitão demonstra contra as instituições republicanas. Como Bolsonaro tem apenas dois projetos de lei aprovados, ele navega como um camaleão entre essas diferentes cores políticas.

Finalmente, os chavões transformaram Bolsonaro em uma espécie de “folk hero”. Ele não liga para as normas ou para a cultura institucional do Congresso. Supostamente, ele tem coragem de falar verdades e não aderir ao politicamente correto—uma “coragem”, convenhamos, blindada por sua imunidade parlamentar. Assim como Boulanger, a propaganda política de Bolsonaro não foca no que ele fez ou no que ele vai fazer, mas no que ele representa. É a política da personalidade no seu extremo.

4. A história não se repete, mas ela rima com frequência

Assim como Boulanger, Bolsonaro representa um possível rompimento com a transição de poder na Nova República. Apesar de diferenças políticas, tanto Fernando Henrique Cardoso, quanto Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff acreditam que a Constituição de 88 representa um avanço na história do Brasil—um momento de superação sobre a Ditadura Militar e a inauguração de uma nova era democrática. Mas Bolsonaro tem outra visão, uma que coloca em cheque as instituições. Afinal, para ele, a “Constituição Cidadã” foi um retrocesso. Bolsonaro, então, seria o primeiro presidente a questionar o alicerce sobre o qual começamos a construir o Brasil contemporâneo.

Se Boulanger representou uma terrível ameaça à Terceira República francesa, Bolsonaro representa a maior ameaça já vista à Nova República brasileira. Os republicanos franceses conseguiram evitar a ascensão de Boulanger, em grande parte por causa das próprias incertezas do general. As coisas são menos promissoras no caso do capitão, que parece estar certo de tudo—em especial daquelas coisas em que ele está mais errado.

Mas independente do que acontecer, é importante lembrar que o Boulangismo também resultou em reformas importantes dentro das outras linhagens políticas. Um dos primeiros fenômenos populistas da história, o Boulangismo cresceu justamente porque ele reconheceu os anseios de uma parte expressiva da população—no caso, uma classe trabalhadora que transitava de uma manufatura artesanal para um processo mais industrial, e que não via os políticos tradicionais oferecerem respostas para essas incertezas. Mas depois que a ameaça apresentada por Boulanger foi superada, os republicanos moderados ficaram mais atentos às demandas da crescente força industrial, e lançaram uma série de projetos de seguridade social que ajudaram a transformar a Terceira República em um dos regimes mais progressistas do começo do século XX.

No contexto brasileiro, a violência representa o cerne da questão. De acordo com dados do IPEA, em 1996 a taxa nacional de homicídios era de 27,80 por 100 mil habitantes, enquanto em 2016 foi de 30,33. Mas, ironicamente, entre 2002 e 2016, ou seja, quando o PT estava no poder no âmbito nacional, a taxa de homicídios caiu quase pela metade na região sudeste (que apoiou Bolsonaro em peso), indo de 34,04 para 19,47. Na cidade do Rio de Janeiro, que nos deu Bolsonaro e que melhor representa o tipo de violência que ele diz combater, a redução da taxa foi maior ainda, indo de 53,48 para 25,82 (a apuração do primeiro turno indica que ele recebeu 58,29% dos votos na cidade). Ironicamente, o capitão recebeu uma maior proporção dos votos nas regiões onde, comparativamente, o problema da violência é menor. Afinal, a única região onde Bolsonaro não ficou na frente no primeiro turno foi o nordeste, onde a taxa de homicídios explodiu de 18,15 em 1996 para 43,68 em 2016.

Essas incongruências demonstram que a maneira como a violência é percebida é tão importante quanto a sua realidade, pois ela está no centro do imaginário coletivo mesmo nos lugares onde ela caiu. Esse fenômeno pode ser explicado, em parte, pelo que a antropóloga Teresa Caldeira intitulou de “fala do crime”. Como ela explica no seu livro Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo, “[a]s narrativas cotidianas, comentários, conversas e até mesmo brincadeiras e piadas que têm o crime como tema contrapõem-se ao medo e à experiência de ser uma vítima do crime e, ao mesmo tempo, fazem o medo proliferar”.[3] O Bolsonaro soube acessar esse imaginário, e construiu a sua imagem em cima disso. Os outros partidos têm que tomar isso em consideração e desenvolver propostas que coloquem a segurança pública no centro de seus diferentes projetos de nação sem usurpar os direitos humanos básicos previstos pela Constituição de 88.

Imagem idealizada do suicídio de Boulanger. Petit Journal, 10 de outubro 1891 (Wikimedia Commons).

Tanto o Boulangismo quanto o fenômeno Bolsonaro são sintomáticos de tensões entre a democracia em massa e um regime republicano—tensões inerentes que afloram em conjunturas peculiares. Não existe um caminho predeterminado quando isso acontece—as únicas coisas certas na história são os imprevistos e as eventualidades. Mesmo se o Boulangismo mudou a política francesa, a ameaça representada pelo movimento começou a dissipar naquela providencial noite de janeiro de 1889, desaparecendo de vez junto com o suicídio patético de sua figura de proa. Resta saber o que acontecerá com o nosso padeiro menos melodramático, e com o movimento que ele atualmente encarna. Afinal de contas, como diz o aforismo apócrifo: a história pode até rimar, mas ela não se repete.


[1] Zeev Sternhell, La droite révolutionnaire, 1885-1914 (Paris: Fayard, 2000).

[2] Svetlana Boym, The Future of Nostalgia (New York: Basic Books, 2001).

[3] Teresa Pires do Rio Caldeira, Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo, tradução Frank de Oliveira e Henrique Monteiro (São Paulo: EDUSP e Editora 34, 2000).